sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Compartilhares


Amanhece no lugar frio. A cena se repete todos os dias: ao fazer a higiene matinal ele deixa a pia suja de pasta de dente, a tampa do vaso sanitário aberta, a toalha de rosto fora do lugar. Ao longo dos anos Joana, já intolerante, diz: - Quantas vezes tenho que dizer para não fazer isso? – Relaxa, querida, tenho muitas aulas hoje e Carlos ainda quer fazer reunião para tratar de novos assuntos acadêmicos – diz ele, acalmando-a, não percebendo que a irritação com a pia suja de pasta de dente ou o vaso sanitário aberto e, até mesmo, a toalha fora do lugar são apenas reflexo do que não há mais conserto.
No café ela ouve o mastigar irritante do marido. O modo como mastiga, como passa a margarina no pão ou serve o café a deixa aporrinhada. Há muito não aguenta mais nem ouvi-lo falar. Tem vontade de gritar. Mas, como de costume, não reage. Resolve não dizer nada. Seu grito interno não lhe permite esboçar palavra. Despede-se dos filhos, da empregada e sai, sozinha, batendo a porta.
A rotina doméstica é tão aborrecida, que acaba por parecer simples demais, banalizando e desrespeitando as partes afetadas. Infelizmente, pois poderia ser proveitosa uma vida de compartilhares.
A vida de Joana andava muito agitada ultimamente. Muitas aulas, afazeres domésticos, criança pequena e filho adolescente. Tudo isso sem divisão de tarefas. Ser mulher é ou sempre foi um emaranhado de atividades desconexas, as quais, sem elas, marido, filhos e parentes não vivem? Que nada! Hoje bem sabe que isso não passa de ilusão.
Ele sai de casa e vai a seu encontro. Por algumas horas esquece a pia suja, o vaso sanitário aberto, a toalha fora do lugar, o mastigar insuportável, as tantas aulas para elaborar, as provas para corrigir, o mestrado, ah!!!! ainda tem o mestrado, aquela monografia que não sai do lugar... ninguém entende para que tanta atividade. Mas, esquece tudo neste período.
Encontram-se. Conversam. Riem. Parece que não há, nunca houve outro momento senão aquele. Ela desnuda-se. Ele acata. Ela não reage, apenas sente. Ele se permite compartilhar assuntos, prazeres, gozos. Puxa! Quanto gozo naquele momento!
Há muito Joana não sente esse prazer. Diante de tantas atividades ela não consegue ter uma hora para ela, a não ser aquela.
O tempo acabou. Deve voltar... voltar ao cotidiano... voltar a realidade... voltar, simplesmente voltar.
Dia seguinte, a mesma rotina. A insuportável rotina. Ela não aguenta mais: - Pela última vez, limpa essa pia depois de escovar os dentes, tampa esse vaso, arruma essa toalha!!! Joana grita, surpreendendo a todos. Despede-se e sai, sozinha, batendo a porta.
Ele sai de casa e vai a seu encontro. Encontram-se. Conversam. Riem. Aproveitam o momento de relaxamento. Afinal, isso acontece apenas algumas horas por semana. Ela esquece tudo e lança-se àquela fuga.
O tempo acaba. Deve voltar... voltar ao cotidiano... voltar a realidade... voltar, simplesmente voltar. Voltar para a dura realidade. Voltar para o desassossego. Voltar para a vida que ajudou a construir e que, infelizmente, o desenho saiu torto e ficou difícil arrumar.
Mas, só um pouquinho! O desenho continua sendo construído. Um rabisco para lá, outro para cá, segue sendo desenhado... ainda há oportunidade para redesenhá-lo, reconstruí-lo. O que falta? Meu Deus, o que falta?
Amanhece. Naquele dia Joana decide redesenhar o desenho feio. Faz o café e vai levá-lo ao marido na cama. Ele surpreende-se com a esposa amável. Resolvem ficar em casa e por alguns assuntos em dia.
Toca o telefone. Ele atende. Joana é para você. É da universidade. Carlos pergunta se você não vai encontrá-lo hoje. Fala com ele e diz que eu também não vou. Ela pensa na decisão tomada. Tenta disfarçar a ansiedade. Fica em silêncio por segundos. As coisas parecem sempre tomar o mesmo rumo. Desculpa, amor, mas eu devo ir. Direi que você vai ficar, que deixe a sua reunião para outro dia. Mas eu preciso ir.
Ela sai de casa e vai a seu encontro. Encontram-se. Conversam. Riem. Aproveitam o momento de relaxamento. Afinal, isso acontece apenas algumas horas por semana. Joana não consegue mais fugir disso. Ali ela esquece tudo e, novamente, lança-se à fuga. Talvez nunca ninguém descubra. Talvez haja um ápice. Talvez não. Ela nunca saberá. Sabe apenas que quer aproveitar aqueles instantes.

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