sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

O canário do pai


Às 5h da manhã, todos os dias, somos acordados com o cantar do canário do pai. Com sua ajuda, ele canta sem parar. Algo aconteceu. O pai está mal, grita a mãe desesperada. Todos seguem em direção ao quarto. A menina agarra a gaiola do canário e fica sentadinha no canto da cozinha, como quem espera que o bicho lhe diga alguma coisa. Algo que lhe tire daquela sensação de insegurança. Ele pia desesperadamente. A mãe, aos berros, chamem um médico, chamem uma ambulância, façam alguma coisa. Todos correm. A ambulância chega. O médico faz os devidos atendimentos. Acabou. Ela olha para todos os lados e abraça a gaiola.... Ela e o pássaro estão, agora, silenciosos. Naquele dia o canário parou de cantar.

sábado, 27 de novembro de 2010

O corpo que cai...

Ele cai do penhasco. Ela olha atônita seu corpo, em solavancos, despencar. Ainda pode ver seus olhos pedindo ajuda, no corpo, agora, sem movimento. Aturdida, tenta esboçar algumas palavras, fazer alguns gestos, reagir de alguma forma. Ele continua na mesma posição. Seus olhos ainda fixos nela, nada diziam. Ela põe a boneca ao lado, deita-se no chão, encosta a cabeça na terra e encontra o olhar que a está buscando insistentemente.

terça-feira, 23 de novembro de 2010

Gostaria de ter dito isso, Drummond:

"É sempre no passado aquele orgasmo,
é sempre no presente aquele duplo,
é sempre no futuro aquele pânico.

É sempre no meu peito aquela garra.
É sempre no meu tédio aquele aceno.
É sempre no meu sono aquela guerra.

É sempre no meu trato o amplo distrato.
Sempre na minha firma a antiga fúria.
Sempre no mesmo engano outro retrato.

É sempre nos meus pulos o limite.
É sempre nos meus lábios a estampilha.
É sempre no meu não aquele trauma.

Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo.
E sempre no meu sempre a mesma ausência"

Oficina de criação literária

Estou participando da Oficina Literária, ministrada pelo Prof Nelson de Oliveira, atividade da FCC.

Como trabalho inicial tínhamos que escrever um texto sobre nosso colega do lado, baseado em sua carteira de identidade.

Recebi o texto do meu colega Jones Custódio, que diz:

"Num dia mofado pelo meu desgosto em trabalhar naquele Shopping repleto de decréptas imagens perfeitas, me deparei com um documento de identidade que havia encontrado no toillet feminino. Trabalho há 23 anos como auxiliar de limpeza e era a primeira vez que tomava consciência na perda de uma identidade. Kátia Regina, uma composição perdida no universo de minha mesa. Penso em ir até o Rio Grande, sua cidade de origem, buscar aquela que nem os institutos de identificação conseguiram localizar. Mas Kátia Regina é a constelação 4026955064 ainda não identificada no abismo do espaço".

quinta-feira, 11 de novembro de 2010

Macarronada ao molho de cenoura picante


Domingo. Dia frio. Estávamos somente nós duas em casa. Mãe, filha. Há muito só estávamos nós duas. As dificuldades persistiam. O que fazer? Às vezes a vida não nos dá alternativa a não ser procurarmos uma como a uma agulha no palheiro. Usar a criatividade é uma delas. Aliás, parece que temos mais criatividade quando não temos mais o que fazer para resolver as situações complicadas.

Como dizia, há muito tempo éramos somente minha filha e eu. Minha companheira. Minha grande razão para continuar, seguir, lutar... hummmm isso soa pedante? Que seja! É isso mesmo! Seguíamos juntas. Lutávamos juntas. Ela sempre com uma palavra de incentivo, mesmo com tão pouca idade.

Fui à geladeira. Quase nada. Aquela cenoura, aquela única cenoura, tamanho médio, alaranjada, firme, me incitava a pensamentos cuja consequência poderia ser momentos de prazer inusitados.

Era preciso fazer o almoço. E eu ainda não sabia o que fazer com aquela cenoura. Vasculhei os armários. Lá no cantinho, bem lá no fundo de um deles havia uma pequena caixa de creme de leite. Creme de leite cujo deleite poderia ser uma prazerosa macarronada, já que sobrava também um pacote de massa comprida.

Ralei a cenoura e a coloquei para fritar com um pouquinho de sal e margarina. Salpiquei orégano e pimenta do reino. Quando a cenoura estava pronta, despejei o creme de leite. O sabor daquele molho foi inigualável. O prazer que senti ao experimentá-lo, não há palavras que possa descrever.

Em separado, preparei o macarrão “al diente” e estava pronta a mais saborosa refeição: macarrão ao molho de cenoura picante.

Arrumamos a mesa. A enfeitamos como se fôssemos receber visita importante. E saboreamos nosso almoço regado à paz e harmonia plena.

Nossa vida é assim!

sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Compartilhares


Amanhece no lugar frio. A cena se repete todos os dias: ao fazer a higiene matinal ele deixa a pia suja de pasta de dente, a tampa do vaso sanitário aberta, a toalha de rosto fora do lugar. Ao longo dos anos Joana, já intolerante, diz: - Quantas vezes tenho que dizer para não fazer isso? – Relaxa, querida, tenho muitas aulas hoje e Carlos ainda quer fazer reunião para tratar de novos assuntos acadêmicos – diz ele, acalmando-a, não percebendo que a irritação com a pia suja de pasta de dente ou o vaso sanitário aberto e, até mesmo, a toalha fora do lugar são apenas reflexo do que não há mais conserto.
No café ela ouve o mastigar irritante do marido. O modo como mastiga, como passa a margarina no pão ou serve o café a deixa aporrinhada. Há muito não aguenta mais nem ouvi-lo falar. Tem vontade de gritar. Mas, como de costume, não reage. Resolve não dizer nada. Seu grito interno não lhe permite esboçar palavra. Despede-se dos filhos, da empregada e sai, sozinha, batendo a porta.
A rotina doméstica é tão aborrecida, que acaba por parecer simples demais, banalizando e desrespeitando as partes afetadas. Infelizmente, pois poderia ser proveitosa uma vida de compartilhares.
A vida de Joana andava muito agitada ultimamente. Muitas aulas, afazeres domésticos, criança pequena e filho adolescente. Tudo isso sem divisão de tarefas. Ser mulher é ou sempre foi um emaranhado de atividades desconexas, as quais, sem elas, marido, filhos e parentes não vivem? Que nada! Hoje bem sabe que isso não passa de ilusão.
Ele sai de casa e vai a seu encontro. Por algumas horas esquece a pia suja, o vaso sanitário aberto, a toalha fora do lugar, o mastigar insuportável, as tantas aulas para elaborar, as provas para corrigir, o mestrado, ah!!!! ainda tem o mestrado, aquela monografia que não sai do lugar... ninguém entende para que tanta atividade. Mas, esquece tudo neste período.
Encontram-se. Conversam. Riem. Parece que não há, nunca houve outro momento senão aquele. Ela desnuda-se. Ele acata. Ela não reage, apenas sente. Ele se permite compartilhar assuntos, prazeres, gozos. Puxa! Quanto gozo naquele momento!
Há muito Joana não sente esse prazer. Diante de tantas atividades ela não consegue ter uma hora para ela, a não ser aquela.
O tempo acabou. Deve voltar... voltar ao cotidiano... voltar a realidade... voltar, simplesmente voltar.
Dia seguinte, a mesma rotina. A insuportável rotina. Ela não aguenta mais: - Pela última vez, limpa essa pia depois de escovar os dentes, tampa esse vaso, arruma essa toalha!!! Joana grita, surpreendendo a todos. Despede-se e sai, sozinha, batendo a porta.
Ele sai de casa e vai a seu encontro. Encontram-se. Conversam. Riem. Aproveitam o momento de relaxamento. Afinal, isso acontece apenas algumas horas por semana. Ela esquece tudo e lança-se àquela fuga.
O tempo acaba. Deve voltar... voltar ao cotidiano... voltar a realidade... voltar, simplesmente voltar. Voltar para a dura realidade. Voltar para o desassossego. Voltar para a vida que ajudou a construir e que, infelizmente, o desenho saiu torto e ficou difícil arrumar.
Mas, só um pouquinho! O desenho continua sendo construído. Um rabisco para lá, outro para cá, segue sendo desenhado... ainda há oportunidade para redesenhá-lo, reconstruí-lo. O que falta? Meu Deus, o que falta?
Amanhece. Naquele dia Joana decide redesenhar o desenho feio. Faz o café e vai levá-lo ao marido na cama. Ele surpreende-se com a esposa amável. Resolvem ficar em casa e por alguns assuntos em dia.
Toca o telefone. Ele atende. Joana é para você. É da universidade. Carlos pergunta se você não vai encontrá-lo hoje. Fala com ele e diz que eu também não vou. Ela pensa na decisão tomada. Tenta disfarçar a ansiedade. Fica em silêncio por segundos. As coisas parecem sempre tomar o mesmo rumo. Desculpa, amor, mas eu devo ir. Direi que você vai ficar, que deixe a sua reunião para outro dia. Mas eu preciso ir.
Ela sai de casa e vai a seu encontro. Encontram-se. Conversam. Riem. Aproveitam o momento de relaxamento. Afinal, isso acontece apenas algumas horas por semana. Joana não consegue mais fugir disso. Ali ela esquece tudo e, novamente, lança-se à fuga. Talvez nunca ninguém descubra. Talvez haja um ápice. Talvez não. Ela nunca saberá. Sabe apenas que quer aproveitar aqueles instantes.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Aos legatários

Queria ter deixado algo, algo que os orgulhasse...
Erros, mínimos
Dúvidas, nenhuma
Pendências, sanadas
Felicidade absoluta!

Queria ter deixado algo, algo que os orgulhasse...
Erros, diversos
Dúvidas, inumeráveis
Pendências, incalculáveis
Felicidade, em busca a cada dia!

Queria ter deixado algo, algo que os orgulhasse...
Erros
Dúvidas
Pendências
Felicidade...
Sintam... Vivam , apenas!

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Bonifácio


Aquele dia era decisivo pra mim. Enfim ia trabalhar como autônoma. Tinha que juntar todos os documentos para formalizar o que queria. Precisava que tudo estivesse de acordo com a lei. Ser professora nesse país não é muito vantajoso. Tinha que arranjar outra fonte de renda.

Chovia e fazia calor. Naquela cidade as coisas aconteciam assim, paradoxalmente a tudo que já havia passado.

Vinha no calçadão da cidade pensando nas dificuldades que enfrentaria dali para frente. Como iria conseguir honrar os compromissos na incerteza. Mas, a vida sempre fora assim, e aquele era apenas mais um problema a superar.

Segui em frente. A passos largos por causa da chuva. Pensamentos absortos em questões filosóficas que nunca ficavam claras. Nuvens no céu e na cabeça. Como estou agindo afinal? Mais uma vez por paixão? Continuei caminhando.

Ao chegar em frente ao prédio de destino, encontrei um homem caído ao chão, vestido de terno e gravata. Balançava a cabeça de um lado a outro e quando virava para a direita abria a boca sem deixar perceber o que realmente estava fazendo. Fez esse gesto muitas vezes. Parei pra ver o que estava acontecendo. Fiquei preocupada, pois parecia que ele não estava se sentindo bem. Cheguei à recepcionista do prédio e perguntei quem era aquele homem e o que estava acontecendo com ele. A moça respondeu que era Bonifácio. Ele sempre fazia isso quando se cansava. Homem de 65 anos, magro, alto, aposentado, que caminha nas ruas de Curitiba com um saco de estopa às costas, levando ali seus pertences. Perdeu sua família num acidente de carro há mais de 20 anos. Desde então, leva a vida como andarilho.

Bonifácio despertou em mim a necessidade de sentir prazer, ao vê-lo deitado saboreando aquele toco de cigarro. Aquele homem franzino, espichado no chão, de lado, virava para a esquerda para puxar a fumaça, virava para a direita para largar a fumaça e fazia isso num ato de profundo prazer. Como podia ele ter prazer deitado no chão imundo e sem privacidade nenhuma? Que nada. Bonifácio não estava preocupado com isso. A vida havia lhe ensinado que tinha que tirar proveito de cada ínfimo prazer que pudesse ter. Era importante que desse valor aos pequenos fatos, pois aí está a felicidade.

Entrei no prédio. Fiz o que tinha que fazer. Quando voltei Bonifácio ainda estava lá, na mesma posição, repetindo os movimentos.

Voltei por onde vim, mas com outros pensamentos. Os de que precisava dar um basta nas tristezas, nas angústias, nas dúvidas, precisava dar um basta nas indecisões. Afinal, estava mudando as perspectivas. Tinha que me sentir bem e feliz. Tinha que estar feliz. Tinha que ser feliz dali pra frente.

Seguia pelo calçadão, agora não mais acabrunhada, com interrogações. Caminhava de cabeça erguida, com esperanças, com decisões, com motivação.

Bonifácio tinha me trazido a certeza de que tudo poderia ser diferente. O que tinha que mudar era apenas o foco. Assim como ele estava tragando aquele cigarro, deitado no chão imundo e sem privacidade, eu poderia transformar, ter um lugar meu, um lugar próspero, um lugar digno.

Bonifácio não foi só um homem caído no chão e que surtiu toda essa reflexão. Bonifácio era um anjo, que estava ali para despertar essa reflexão.

Segui caminhando, já com passos mais rápidos e sorriso no rosto. Confiante. Faceira. E, de repente, virei para trás em busca de Bonifácio... não o enxerguei mais... A partir desse momento, tive a certeza de que ele tinha vindo para dizer que apenas seguisse em frente e que fizesse isso com muita satisfação.

sábado, 20 de fevereiro de 2010

O chorinho


Noite quente. Naquele lugar muitas pessoas brancas e pretas. Há tempos não via uma cidade com tantos negros. Mão branca, mão preta. Mão na mão. Corpo branco. Corpo preto. Vários corpos suados se mexiam num frenesi constante, num continuum.
A música era harmoniosa, cadenciada. O choro se juntava com a melancolia dos tons e as lágrimas que escorriam dos corpos brancos e pretos.
Eu observava como se nunca, um dia, tivesse feito parte daquele lugar.
O choro que todos dançavam com entusiasmo, não era choro, era festa, era o choro da festa. O choro que eu sentia enquanto ouvia o choro, era um lamento. Lamento por não estar mais chorando aquele chorinho. Lamento por não estar mais dançando aquele chorinho. E aquilo continuou, se arrastou a noite toda.
Corpos sensuais se diziam, se falavam. Se diziam coisas que não se podia ouvir; se falavam coisas que não podiam deixar-se ouvir.
Naquele lugar, naquele calor, os corpos brancos e pretos choravam o choro da liberdade. Liberdade de se ser o que é. Liberdade de dizer o que se quer. Aquela que só se tem quando se chora.
É lindo ver o branco e o preto chorando em harmonia!

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

Vejo meu homem ir...

Vejo meu homem ir...
Vejo meu céu escurecer
E meu coração se fechar, insistente, para sempre... talvez.
Vejo meu homem ir...
Por alguma razão desconhecida
Ele se vê desconectado dessa vida, sofrida, inatingida.

Vejo meu homem ir...
E, por instantes, tento segurá-lo,
Num esforço inócuo arrastá-lo
Para mim, novamente... inocente eu.
Vejo meu homem ir...
E sua decisão é cruel
Pois não crê que ainda existam esperanças
Para um amor judiado, cansado, atormentado... com razão.

Vejo meu homem ir...
E, por fim, em prantos, percebo
Que, de nada adianta tanto esforço
Pois se hoje sofro, amanhã será pior,
Caso não consiga aceitar
Que de meu, só existe o pronome...
E, o que devo deixar partir, não é o homem
E sim a paixão... a ilusão... a contravenção... a transgressão... o dolo...

Deixo meu homem ir...