domingo, 28 de fevereiro de 2010

Bonifácio


Aquele dia era decisivo pra mim. Enfim ia trabalhar como autônoma. Tinha que juntar todos os documentos para formalizar o que queria. Precisava que tudo estivesse de acordo com a lei. Ser professora nesse país não é muito vantajoso. Tinha que arranjar outra fonte de renda.

Chovia e fazia calor. Naquela cidade as coisas aconteciam assim, paradoxalmente a tudo que já havia passado.

Vinha no calçadão da cidade pensando nas dificuldades que enfrentaria dali para frente. Como iria conseguir honrar os compromissos na incerteza. Mas, a vida sempre fora assim, e aquele era apenas mais um problema a superar.

Segui em frente. A passos largos por causa da chuva. Pensamentos absortos em questões filosóficas que nunca ficavam claras. Nuvens no céu e na cabeça. Como estou agindo afinal? Mais uma vez por paixão? Continuei caminhando.

Ao chegar em frente ao prédio de destino, encontrei um homem caído ao chão, vestido de terno e gravata. Balançava a cabeça de um lado a outro e quando virava para a direita abria a boca sem deixar perceber o que realmente estava fazendo. Fez esse gesto muitas vezes. Parei pra ver o que estava acontecendo. Fiquei preocupada, pois parecia que ele não estava se sentindo bem. Cheguei à recepcionista do prédio e perguntei quem era aquele homem e o que estava acontecendo com ele. A moça respondeu que era Bonifácio. Ele sempre fazia isso quando se cansava. Homem de 65 anos, magro, alto, aposentado, que caminha nas ruas de Curitiba com um saco de estopa às costas, levando ali seus pertences. Perdeu sua família num acidente de carro há mais de 20 anos. Desde então, leva a vida como andarilho.

Bonifácio despertou em mim a necessidade de sentir prazer, ao vê-lo deitado saboreando aquele toco de cigarro. Aquele homem franzino, espichado no chão, de lado, virava para a esquerda para puxar a fumaça, virava para a direita para largar a fumaça e fazia isso num ato de profundo prazer. Como podia ele ter prazer deitado no chão imundo e sem privacidade nenhuma? Que nada. Bonifácio não estava preocupado com isso. A vida havia lhe ensinado que tinha que tirar proveito de cada ínfimo prazer que pudesse ter. Era importante que desse valor aos pequenos fatos, pois aí está a felicidade.

Entrei no prédio. Fiz o que tinha que fazer. Quando voltei Bonifácio ainda estava lá, na mesma posição, repetindo os movimentos.

Voltei por onde vim, mas com outros pensamentos. Os de que precisava dar um basta nas tristezas, nas angústias, nas dúvidas, precisava dar um basta nas indecisões. Afinal, estava mudando as perspectivas. Tinha que me sentir bem e feliz. Tinha que estar feliz. Tinha que ser feliz dali pra frente.

Seguia pelo calçadão, agora não mais acabrunhada, com interrogações. Caminhava de cabeça erguida, com esperanças, com decisões, com motivação.

Bonifácio tinha me trazido a certeza de que tudo poderia ser diferente. O que tinha que mudar era apenas o foco. Assim como ele estava tragando aquele cigarro, deitado no chão imundo e sem privacidade, eu poderia transformar, ter um lugar meu, um lugar próspero, um lugar digno.

Bonifácio não foi só um homem caído no chão e que surtiu toda essa reflexão. Bonifácio era um anjo, que estava ali para despertar essa reflexão.

Segui caminhando, já com passos mais rápidos e sorriso no rosto. Confiante. Faceira. E, de repente, virei para trás em busca de Bonifácio... não o enxerguei mais... A partir desse momento, tive a certeza de que ele tinha vindo para dizer que apenas seguisse em frente e que fizesse isso com muita satisfação.