sábado, 14 de janeiro de 2012

As caturritas dizem

O que você faz embaixo das cobertas? Ora, me deixa! Estou descansando. Mas, você sempre está embaixo das cobertas! O que parece isso? Que tanto descansa? Eu descanso, eu descanso, eu me encontro, eu me desencontro, eu sigo embaixo das cobertas. Me deixa! Aquela voz não parava de me perturbar. Por que não podia ficar embaixo das cobertas? Quando saí de casa aquele dia, não sabia o que iria acontecer. Não tinha ideia, como nunca tenho. Minha vida é simplesmente um fato inusitado. Já me disseram que eu simplesmente não existo no Universo. Bobagem! Todos existimos! Somos energia que não se apaga jamais. Mas alguém cisma em me reduzir a zero. Vou e volto. Pareço criativo, às vezes. Outras, nem tanto, perambulo, feito alguém inexistente. Ah! Está admitindo que não é ninguém no espaço? Não! Apenas constato o fato de que, talvez, eu seja um ponto de interrogação. Quero voltar pra minha cama! Lá “eu sou amigo do rei”. Lá ninguém me descobre. Fique quieta! Que medo é esse? Não sei. Sei apenas que lá me sinto seguro. Quando saí de casa não sabia o que ia acontecer. Estava absorto. Meus pensamentos iam e vinham, como eu. Caminhei, caminhei. Parei para ver os muitos pássaros numa árvore enorme no meio da praça. São caturritas! De todas as cores! Como gosto de pássaros, sejam eles de qualquer espécie. Acho que é época de acasalamento. Elas gritam. Elas choram. Elas gemem. Elas dizem! Aquela cena me satisfaz. Satisfação era palavra rara no meu vocabulário: nada me satisfazia há anos. As caturritas, elas estavam se satisfazendo generosas. Eu as observava e quanto mais as observava, mais elas gritavam e mais elas diziam. Oi! Estão falando comigo? Sim. Não dá pra perceber? Mais ou menos. O que querem comigo? Está ouvindo as vozes? Quais? Ora, as vozes. As que você escuta sempre. Elas não lhe dizem nada? Sim. Quer dizer, não sei ao certo. Me parece que estou ficando louco. Puxa! Estamos aqui todas para dizer a você. Dizer o quê? O que você precisa ouvir. Olhei para os lados. Olhei para todos. Pensei que talvez eu estivesse ficando louco mesmo. Afinal, não falo com ninguém já faz algum tempo. E agora, aquelas caturritas, todas, falando comigo! Estava certamente ficando louco. Mas elas insistem: o que está acontecendo com você? Nada. Sim, nada. E isso é terrível. Vocês querem também acabar comigo? Não, queremos apenas que escute as vozes. Aquelas de dentro de você. Aquelas que dizem o que você é, quem você é, o que deve fazer. Entendeu? Não sei. Talvez. Talvez. Advérbio de dúvida, acaso, casualmente, porventura, possivelmente, provavelmente, quiçá. Ora, eu passara a vida no “talvez”. Segui em frente. Aquelas caturritas me deixaram ensimesmado. O que elas queriam, afinal? Continuei andando. Tinha algo para fazer na rua, mas já não lembrava mais o que era. Talvez tivesse que entregar aquele livro na biblioteca. Ele estava pesando na minha pasta. Talvez eu tivesse que assistir ao filme que estava em cartaz. Tinha que escrever uma crônica sobre ele. Talvez tivesse que voltar para casa e preparar aquela aula que deveria dar no dia seguinte. Talvez. Talvez. Talvez eu tivesse que voltar pra baixo das cobertas. Lá eu me sentia seguro. Lá eu era “amigo do rei”. Meus pensamentos, lá, são outros. Descanso no leito que preparo a cada dia para dormir sozinho. Lá “sou amigo do rei”, que rei? E “quando eu estiver mais triste”, aí sim é que não quero outra coisa a não ser voltar pra baixo das cobertas. Mais triste? Dá pra ficar mais triste? Ah! Aquela voz novamente. Sim, há níveis de tristeza. E eu, às vezes, fico muito mais triste do que simplesmente triste. “Quando à noite me der vontade de me matar”, voltarei às caturritas.

Adormecido amor!

Vem, adormecido amor, Arrebatar o coração que padece. Estou a tua espera. Estou a tua espera. Vem, adormecido amor, extasiar o corpo que atura. Estou a tua espera. Estou a tua espera. Vem, adormecido amor, preencher a alma que expia. Estou a tua espera. Estou a tua espera. Vem, adormecido amor, maravilhar o coração que aguarda. Estou a tua espera. Estou a tua espera. Vem, adormecido amor, enrijecer o corpo que suporta . Estou a tua espera. Estou a tua espera. Vem, adormecido amor, abismar a alma castigada. Estou a tua espera. Estou a tua espera. Ah! Estou a tua espera!